“…pra essa gente careta e covarde”

O que me deixa realmente enojada nesses episódios de violência contra mulheres é a maneira como, por uma manobra sutil, consegue-se tornar a vítima, culpada. É incrível como esse é um processo que já se naturalizou na nossa linguagem e, consequentemente, no nosso comportamento. Foram incontáveis as vezes em que ouvi essa semana, a respeito do caso Bruno: “O que ele fez não se justifica, mas ela também…” Hoje na academia meu sangue subiu e minha voz soou um tanto quanto irritada enquanto eu rebatia uma observação de uma das professoras a esse respeito, ao mesmo tempo em que piadinhas machistas pipocavam aqui e ali. E, vejam vocês, é uma academia só para mulheres. Incrível como não se consegue ver o óbvio. Vivemos numa sociedade machista e opressora e compramos e ratificamos todo santo dia o discurso que nos mantêm cativas. Não estou falando aqui de guerrinha de sexos, essa coisa caricata, infantil e ridícula, a qual também só faz alimentar essa situação.

O caso aqui é perguntar a respeito da tal frase que citei acima: ‘mas ela também’ o quê? E olha que eu perguntaria olhando a pessoa que emitiu a frase infeliz dando uma boa encarada, se pudesse. Porque essa é uma ‘colocação’ totalmente absurda e descabida. Não existe essa brecha. Essa fresta por onde se pode encontrar justificativa para qualquer barbaridade que se cometa contra uma mulher. Claro que violência é ruim por si só. Mas aqui o que está em pauta é um tipo de violência com um vetor específico, motivada por convicções que estão disseminadas nas cabecinhas das pessoas e que passam por naturais. A isso damos o nome de senso comum. Ocorre que ‘natural’ é um adjetivo totalmente falacioso. A partir do momento em que adentramos o reino da linguagem – isso em idade muito tenra – perdemos para sempre esse possível acesso ao mundo ‘natural’. O que temos é construído pela linguagem. E, muitas vezes, é essa mesma linguagem que nos impede de enxergar um dado estado de coisas. Como diz Wittgenstein [sempre ele]:

Donde vem isto? A idéia está colocada, por assim dizer, como óculos sobre o nosso nariz, e o que vemos, vêmo-lo através deles. Não nos ocorre tirá-los.

Investigações Filosóficas, §103

Reproduzimos as ideias que recebemos sem questioná-las, sem perguntar de onde elas vêm e a quem elas servem e como produto final temos isso: homens e mulheres que acham justo uma mulher ser violentada se a mesma estava usando uma roupa ‘provocante’, afinal, ‘ela pediu’. Toda uma sociedade que até acha errado que Elisa tenha sido morta com requintes de crueldade, mas que sempre se apressará em lembrar que ela era uma ‘Maria Chuteira’, que fazia filmes pornô, que era uma piranha [coisas que eu ouvi hoje, durante a malhação]. O que, no final das contas, reforça a ideia de que, se ela não tivesse ido lá,se ela não tivesse procurado… Ou seja. Elisa é a culpada da própria morte. O Bruno pode ter sido o mandante, mas, no fundo, a culpada é ela. Parece tão lógico a essas pessoas esse tipo de ‘raciocínio’.

O mesmo raciocínio que induz um delegado a dizer que, se uma moça estava desacordada, ele não pode afirmar que houve estupro – ainda que haja marcas de violência nos genitais, presença de esperma e – mais importante – o próprio depoimento da vítima. Isso, infelizmente, não é ficção. Aconteceu em Santa Catarina envolvendo jovens de 14 anos. Já posso imaginar quando o caso ganhar a grande imprensa: “Ah, mas o que uma mocinha fazia na casa de rapazes sozinha? Quem mandou ela se encher de vodca? Moças ‘direitas’ não fazem isso. Ela procurou!!!”. Quem viver, verá.

Idem no caso daquela turba enfurecida, na ocasião do quase linchamento da moça do vestido, lá na Uniban. Existem regras não escritas que as mulheres mandatoriamente têm que seguir. Do contrário, encontrarão o desprezo, o xingamento e pior: violência e morte. O corpo da mulher não pertence a ela – segundo esse mesmo pensamento. Pertence ao grupo social, ao macho que lhe ‘tomou’ por esposa, antes disso ao pai, aos irmãos a qualquer um, menos ela. Ela que experiemente querer viver sua vida como lhe aprouver, ela que ouse ser livre, que declare gostar de sexo, imagine. Quer dizer, declarar até pode, mas espere pelo pior. E não pensem que esse cenário – que mais lembra o Taliban – é comum apenas em lugares distantes dos grandes centros.

Sei que muitos podem evocar o caráter dessas mulheres como ‘justificativa’, ‘atenuante’ das barbaridades ou  – como num espelho do mundo natural – um elo que une causa e consequência. ‘Elas não são flor-que-se-cheire’. Ocorre que não se desmontam preconceitos discutindo casos individuais. Não se desarticula uma situação de dominação evocando falhas de caráter. Como eu li outro dia no Twitter, direitos são direitos. Não se plesbicitam direitos, não se questiona se devem ser aplicados a A, B ou C. Direitos são para todos, indiscriminadamente. O que temos a fazer é validá-los, exigi-los, se esse for o caso. As ‘Marias-Chuteira’, ‘Marias-Gasolina’, ou seja lá que outro epíteto lamentável venham os homens a inventar, não são menos merecedoras dos direitos que qualquer ‘dona de casa honesta e mãe de família’. É preciso brigar por essa ideia todo santo dia.

Eu tenho um filho de 19 anos. E ensinei a ele que machismo é uma coisa errada. Ensinei a ele como detectar isso no comportamento dele e das pessoas que o rodeiam – porque muitas vezes são coisas bem sutis. Sempre disse a ele que não se resolve nada com violência e que – NÃO! – não está tudo bem bater numa mulher se você se desentende com ela. Isso não é aceitável, isso é errado. Bati nessa tecla e insisto até hoje em discutir com ele os casos que aparecem na mídia. Sempre acreditei que assim estaria criando um ser humano mais justo. Mais sensível ao sofrimento alheio. Mas acho que isso apenas é pouco. É preciso berrar, espernear, denunciar.

O caso Bruno me preocupa sim. Eu educo gente, eu sou responsável pela formação intelectual de gente que está começando a viver. Seria irresponsável da minha parte se eu simplesmente me recusasse a pensar sobre esse e tantos outros episódios violentos que têm acontecido ultimamente. Não sei como concluir esse texto. Acho que me perdi. Ou, de fato, não há conclusão a ser feita, a não ser de que, como grupo, estamos bem mal. Machismo é uma praga. E não me ocorre outra coisa que possa ser feita para combatê-lo a não ser, nos mantermos alertas. E falar; falar muito.

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Feminismo não é a minha praia. Não tenho leituras adequadas, nem argumentação elaborada. Esse texto, escrito sem pensar muito, funciona mais como um desabafo.

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Update: blogs que falam desse assunto:

Síndrome de Estocolmo

Corpo Indisciplinado

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Update 2:

Artigo da Agencia UNB sobre o Caso Bruno e sobre como a imprensa vem se manifestando a respeito. Segundo uma professora da UNB “A imprensa está pior do que revista de fofoca. É um tipo de jornalismo que beira o marrom”. Leia o artigo completo aqui.

13 Comments

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13 responses to ““…pra essa gente careta e covarde”

  1. Faco suas as minhas palavras.

    Muita vergonha de ver no mundo mulheres assim, que são as primeiras a jogar pedra nas outras, essa atitude machista das mulheres no Brasil muito me constrange, dá nos nervos realmente ouvir coisas desse tipo, como você ouviu na academia e tanto podemos ler pela internet nesse caso do monstro jogador.

    Também é só um desabafo, ia escrever sobre isso no meu blog, ou vou, mas ainda não tive ‘estômago’.

    Beijo e um bom final de semana!

  2. madoka

    pois é Cris, eu também tenho dois filhos um de 9 e 5 aninhos e tentamos passar isso tudo que vc também acredita e fala pro seu filho de 19. Estamos no séc XXI? com tanto de coisas que o homem já criou no mundo, e não avança nas idéias? Eu concordo contigo, não dá pra ficar calada, temos que falar, falar e falar muito, e mesmo assim é pouco.
    bjk
    madoka

  3. oi, luciana. então. eu contei essa história da academia pra ilustrar, mas acho que tanto homens como mulheres estão expostos à mesma influência. nós partilhamos a mesma língua e esses valores são disseminados pela língua; logo é difícil mesmo ter essa consciência. lutar contra um mundo opressor é muito difícil. existe um teórico aí – não me lembro qual agora – que diz que é por uma manobra que os oprimidos reforçam essas categorias de dominação. daí que tudo parece natural. a gente precisa ter cuidado pra não incorrer nesse erro, de achar que as mulheres são mais culpadas. a solução? não sei se tem. mas eu acredito que é pela educação formal e não formal que a gente pode conseguir alguma coisa nesse sentido de combater o machismo vigente. bj, linda. e obrigada pelo comentário.

  4. oi, madoka. sim, é pouco. é triste, mas é pouco, só que eu acho que não dá pra ficar na praça dando milho aos pombos enquanto os absurdos vão acontecendo. um amigo no Twitter disse que até a nave-mãe desistiu de vir buscar a gente. por que, né? tá brabo. beijinhos

  5. gente, o teórico que eu citei acima é o bourdieu, e eu li essa citação no blog Corpo Indisciplinado, já linkado no post. bj

  6. Arthur

    Oi Cris, a Tatinha passou por uma situação similar no refeitório do trabalho. Ela também não aguentou ficar quietinha e lembrou o individuo machista que mulher tem todo o mesmo direito de gostar de sexo que os homens. Que é uma imbecilidade estes argumentos de que o “pobre coitado” foi seduzido. E que não há como justificar nenhum destes casos que você citou a não ser que você seja machista.

    O mais foda é que as vezes conseguimos criar uma redoma de amigos que nos bridam do “mundo real” e esquecemos o quanto machista e preconceituoso este país ainda é. Mas é só pisar fora da nossa bolha e sentir de novo o cheiro de merda. Eu sei que isso está melhorando, mas são coisas como essas que me fazem desejar desistir e ir para outro país menos problemático.

  7. adorei o texto, gosto de ler coisas que eu “fico achando que poderia ter dito” mas alguém disse melhor que eu.

    não sei do caso, não li nada aqui sobre isso, mas já imagino … e tem sempre alguém mandando essa, “mas ela também”…. e em geral comentário de mulher, mulher que tem problema com outras mulheres que se resolveram sexualmente, ou que fazem o que tão afim abertamente.

  8. E ainda é bem possível que o crime hediondo cometido pelo jogador e a seu mando seja tratado com leveza, porque sabemos que os que têm mais dinheiro conseguem penas mais leves por conta das inúmeras lacunas no sistema penal.
    Muito bom texto e muito oportuna reflexão, cris.
    um abraço,
    clara

  9. Eu concordo aí com tudinho gênero número e grau, especialmente a parte de que são os pais que têm que colocar dentro da cabecinha do filho (e da filha!) o que é certo e o que é errado.

    Quando se cresce sendo ensinado rodeado por todos os lados (família, amigos, mídia e redes sociais) que o errado é certo e vice-versa, é possível sim tirar o óculos do nariz, mas nem todo mundo tá a fim de ir contra a maré né?

    Que esses casos tenham ao menos umim impacto de fazer todo mundo coçar a cabeça e começar a ver que esse papo de “mas ela também” não é por aí não…

  10. a ‘culpa’ sempre é da mulher né?
    enquanto pensarem assim a coisa vai ficar feia pro nosso lado.
    bjs

  11. Cris…já ouvi tanto esses tipos de comentários a respeito do caso Bruno e do caso da adolescentes aqui em SC. Me enoja e me cansa.
    Ótimo texto…vou publicar com seu nome no meu blog, ok?
    bjoos

  12. flávia, sinta-se à vontade. beijinhos

  13. Karol

    Tão triste tudo isso. Eu gostaria de ter escrito esse texto mas q bom q vc o fez. Vou encaminhar para todos os meus amigos.
    Beijos, flor.

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