No post sobre Wittgenstein, o Thanatos fez o seguinte comentário:
é que você falou que a poesia é uma maneira de burlar um pouco as regras do que pode ou não ser dito. Na minha cabeça eu imaginei que as regras pra funcionarem ter que ser de acordo entre os envolvidos, e pra torcê-las, isso também entra em consideração.
Na relação eu x poesia, não nos entendemos. Por algum motivo eu ou não acho graça, ou não acho bonito, ou não entendo, ou qualquer combinação disso tudo. (fora umas poucas, tipo a que vc me mostrou a um tempão atrás que eu gostei)
Aí eu pensei que talvez ela não respeite a minha parte do acordo, não conseguimos, eu e a poesia, definir um conjunto de regras em que nos entendamos. Mas é só uma sugestão. Pode ser só que eu não gosto muito e pronto
Me deixou na dúvida também se o Witt considerava essa relação como mano a mano, uma parte com a outra, ou se é um acordo mais geral entre as pessoas todas que falam a mesma língua?
Bem, eu sei que o espaço é curto e meu tempo é escasso, mas vou tentar.
Esse exemplo da poesia me veio assim de repente, mas eu sei que tem gente – minha orientadora, inclusive – que se interessa pelas relações entre linguagem poética e filosofia não-imanentista. Nunca li nada sobre, porém, e estou falando de ‘orelhada’ mesmo. Porque eu falei isso? Primeiro, porque a filosofia de Witt. é uma tentativa de escapar do binômio ‘imanência/ceticismo’. Ou seja, ou você aposta na metafísica ou parte pra dúvida cética e aí aceita o vale-tudo. E quando eu digo ‘vale-tudo’ é vale-tudo mesmo. Algo do tipo, qualquer coisa vale como literatura, qualquer coisa vale como arte, como tradução, etc, etc – e esse é o grande ‘nó’ dos estudos ‘pós’-tudo (pós-modernidade, pós-desconstrução, pós-essencialismo e por aí vai). Pra fugir disso – e da aposta imanentista – Witt. se apóia na noção de ‘critério’. Claro que eu não posso falar de critérios aqui, esse espaço não daria nem pro começo. Outra coisa é essa noção de que a linguagem é uma atividade regulada. Witt. diz que a essência, o sentido se expressa na gramática, mas não essa gramática normativa, e sim o ‘uso’ que os falantes fazem da língua. Gramática é uso. Sentido é uso. Só que o uso não é solitário. Eu não posso sair por aí usando a língua do jeito que me vem à cabeça, porque eu pertenço a uma comunidade de falantes. Então é preciso que estejamos de acordo sobre algumas coisas. Eu acho que a poesia entra aí. O jogo da poesia permite que a gente ‘diga’ coisas burlando as regras estabelecidas pela linguagem. A poesia permite que se diga o ‘indizível’. Esse indizível, na verdade, não existe, ele é só mais uma ficção. Para Witt. (e eu concordo com ele) não existe a possibilidade de eu entender algo e não conseguir exteriorizá-lo, até porque ele rompe com essa dicotomia interno/externo que vem desde há muito e tem em Descartes um representante de peso.
Eu sei que o texto está cheio de ‘buracos’. Mas os diálogos são assim mesmo. A gente fala uma coisa aqui, esclarece outra ali e vai tocando.
Pra terminar, vou deixar com você dois exemplos de poesia que fazem um ‘re-arranjo’ nas regras da gramática (do uso). Um é o Manoel de Barros; outro, Sylvia Plath. Você tira as suas conclusões e me fala depois. Porque indiferente, tenho certeza de que você não vai ficar.
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.
Manoel de Barros, O Livro das Ignorãças
Love set you going like a fat gold watch.
The midwife slapped your footsoles, and your bald cry
Took its place among the elements.
Our voices echo, magnifying your arrival. New statue.
In a drafty museum, your nakedness
Shadows our safety. We stand round blankly as walls.
I’m no more your mother
Than the cloud that distills a mirror to reflect its own slow
Effacement at the wind’s hand.
All night your moth-breath
Flickers among the flat pink roses. I wake to listen:
A far sea moves in my ear.
One cry, and I stumble from bed, cow-heavy and floral
In my Victorian nightgown.
Your mouth opens clean as a cat’s. The window square
Whitens and swallows its dull stars. And now you try
Your handful of notes;
The clear vowels rise like balloons.
Sylvia Plath, Ariel
Tradução:
O amor faz você funcionar como redondo relógio de ouro.
A parteira bateu em seus pés, e seu grito nu
tomou o seu lugar entre os elementos.
Nossas vozes ecoam, engrandecendo a tua chegada. Estátua nova
Num museu arejado, a tua nudez
assombra a nossa segurança. Rodeamos-te brancos como
paredes.
Sou tua mãe
tanto quanto a nuvem que destila um espelho que reflete seu lento
apagamento às mãos do vento.
A noite toda a tua respiração de mariposa
Flutua entre as rosas lisas. Acordo e ouço:
move-se no meu ouvido um mar distante.
Um grito, e cambaleio para fora da cama, vaca gorda e florida
na minha camisola vitoriana.
A tua boca abre-se limpa como a de um gato. O quadrado da
janela
Empalidece e engole as estrelas sombrias. E tu agora ensaias
a tua
mão cheia de notas;
claríssimas vogais elevando-se como balões.
Eu deveria estar escrevendo a minha tese. Mas esse assunto é *tão* a minha tese. Zero de culpa.